Monday, October 23, 2017

Pensando com a própria cabeça – réplica ao “Nosso Coro Particular de Demônios” (Parte III)

3. Se Deus não existir, tudo é permitido?

Depende do indivíduo. Como bem observado por Pondé, há quem não acredite em Deus e tenha comportamentos morais construtivos – a maior parte deles, creio. Pois, muitos dos que se consideram ateus chegaram a esta conclusão pela lógica e pela razão – lógica que considero materialista, mas nem por isso inferior – e esta mesma lógica é a que os leva a acreditar que fundamentos morais precisam ser preservados e adotados, pelo bem do indivíduo e da sociedade.

Por outro lado, há quem acredite em Deus e até se apoie em preceitos morais – pessoas que, como o próprio Pondé às vezes fala com certo tom de desprezo e crítica, se denominam “gente de bem” – e acham razoável a perseguição, a tortura, o estupro e o assassinato de pessoas por não serem da mesma raça ou etnia; por não seguirem a mesma religião; por possuírem um ponto de vista ou uma ideologia diferente; por terem uma opção sexual diferente.

Como ele mesmo citou, "muito se matou em nome de Jesus, que parece ser um cara legal".

Concordo com o filósofo de que a religião ou a crença em Deus não faz de ninguém um ser melhor. Nem pior. Ser melhor depende de si mesmo, de postura e ação. Pensar, falar e agir definem o que somos. E a melhor transformação, ao meu ver, é aquela que ocorre de dentro para fora, aquela provocada pela experiência (tentativas e erros), e não pela influência dos outros.

O raciocínio de Kant, citado por Pondé, de que “as pessoas que precisam de um Deus para segurarem seus impulsos imorais ou violentos são idiotas morais”, faz sentido para mim, ainda que eu entenda ser rude e prepotente tachá-las de “idiotas morais”. Porque um dos objetivos da religião é exatamente esse – domar os instintos. Paulo já dizia: “leite vos dou de beber, porque comida sólida é para os adultos”. O grosso do ensinamento religioso é oferecido às pessoas de acordo com sua capacidade de entendimento, com a linguagem que possam compreender. Figuras como "céus" e "inferno", "salvação" e "perdição", embora não sejam simples ficções sob minha ótica, são utilizadas com o claro objetivo de conduzir os fiéis.

É uma “muleta” de que precisamos para nos apoiar em nossa jornada, mas que em determinado momento teremos de abandonar para nosso próprio crescimento espiritual, e a razão pode estar na explicação que darei a seguir:

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O fundamento absoluto para o bem não precisa estar na existência de Deus, embora eu ache que exista uma relação profunda entre ambos (sim, eu acredito em Deus).

Seu fundamento está em seu propósito.

Entendo que o bem é praticado de forma mais autêntica e pura não por aquele que o pratica porque sua religião o prega, ou porque "Deus está vendo"; porque se ele praticá-lo será recompensado de alguma forma, aqui ou lá do outro lado; ou porque se não praticá-lo, poderá ser punido, pelo karma ou pela Providência Divina, ou pelo castigo eterno; porque se o fizer, ganhará prestígio e respeito; ou porque se não o fizer, a sociedade não o verá com bons olhos – enfim, o bem que é praticado pelo medo e pela vergonha, citados por Pondé em seu livro.

O bem é praticado de forma mais autêntica e pura por aquele que o pratica simplesmente por desejar o bem, sem nenhum motivo maior, sem interesses, sem contrapartida. O bem em sua pura forma é espontâneo, livre de preconceitos, livre do condicionamento; ele é direto e transparente.

Como chegar a este ponto? Difícil dizer, porque nosso superego sempre estará lá para vigiar nossas ações e nos dar sugestões, muitas vezes com um ar de censura e correção. O que nos faz escravos do condicionamento.

Eu acho que a consciência é o começo. E a religião, o superego, o medo, a vergonha ou qualquer outra "muleta" pode servir de instrumento para a prática, como num exercício. Até que se torne automático, espontâneo, apesar de eu achar que situações inusitadas e inéditas possam nos servir de teste e fazer nossa cabeça trabalhar, forçando-nos a recorrer a reflexões e o uso da ponderação. Enfim...

E o que seria o bem, afinal? Isto renderia não um, mas vários posts pela complexidade que envolve.

Mas resumindo, para concluir, se Deus não existir, ainda acreditarei no bem, e na força que o promove, o amor, mesmo reconhecendo minhas limitações – serei um eterno aprendiz. Porque se é permitido que as pessoas tenham uma religião, e isso é razoável, por que não se converter à religião do amor, em que a pratica do bem seria sua única finalidade? O que me faria diferente de alguém religioso?

Friday, October 13, 2017

Pensando com a própria cabeça – réplica ao “Nosso Coro Particular de Demônios” (Parte II)

2. Existe vida após a morte?

Há quem acredite que sim, há quem acredite que não. Eu faço parte do primeiro grupo.

É inegável que existe certo incômodo com a ideia de que a morte é o fim, e para muitas pessoas isso é intragável. Se me perguntarem se eu sofro de tal incômodo, devo admitir que sim. E se acreditar na vida após a morte é uma forma de driblá-lo, a sinceridade me fará reconhecê-lo.

Contudo, não é só isso. Há também a questão da perspectiva. Porque em observação à natureza, percebo que quase tudo funciona em ciclos. Dia e noite, sono e vigília, estações do ano, ciclo da água, do carbono, do nitrogênio. A cadeia alimentar. O movimento dos astros, dos elétrons, etc. O ciclo é um padrão na natureza.

A morte é um estágio, uma fase; portanto, parte do processo da vida.

Outro detalhe a ser frisado é sua imprescindibilidade: num ambiente como o nosso, em que nos reproduzimos – ou seja, um ser humano gera o outro através do sexo, já que somos seres sexuais – a morte é algo fundamental e lógico; ela precisa existir, por uma questão de equilíbrio.

Ademais, um fato que se pode observar na natureza é a renovação. Os hindus enfatizam tal conceito através da trindade Trimurti, a mais importante de seu panteão. Eles cultuam o deus Shiva, que é o deus da destruição, mas também da renovação, e ele geralmente é retratado como um yogi, um deus casto. A minha interpretação para este aspecto da divindade é o de que a natureza sempre busca a evolução, o refinamento, e sobre isso me aprofundarei em outro post.

O ponto a que pretendo chegar é o de que nós humanos somos tão apegados a nós mesmos que, creio eu, seria mais fácil nos aprofundarmos mais ainda em nosso narcisismo e condicionamento, estreitarmos mais ainda nossa visão de mundo do que abrirmos mais a nossa mente, amadurecermos mais, tornarmo-nos pessoas mais compreensivas, se vivêssemos mil anos ao invés de cem (não são muitos os que chegam aos cem, eu sei). Por isso é que eu acredito que nosso tempo de vida é curto, porque Deus, ou a natureza (chame-o como quiser), busca sempre a renovação e o aprimoramento, e nos impede de nos afogarmos demais em nosso egoísmo e mesquinhez.

(e a morte muitas vezes parece não ser suficiente)

Retornando à questão dos ciclos da natureza, para completar o assunto, afirmo que como o corpo, feito de pó, retorna ao pó da terra (e esse é o fim de um ciclo), aquilo que nos torna vidas coesas, com individualidade, e que muitos denominam alma, também retorna à sua origem, que para nós, com a percepção voltada ao material, nos parece inacessível. No entanto acredito piamente nela, a Anima Mundi (não me prendo a conceitos pré-estabelecidos; aplicando tal termo apenas como o nome propriamente sugere). Somos constantemente influenciados por ela, para o bem ou para o mal, tal qual o inconsciente coletivo.

O Vinícius Lacerda, que escreve este texto, por exemplo, quando de sua morte, deixará de existir. É uma persona que a natureza há de descartar, e permanecerá viva somente nos registros e nas memórias das pessoas. Mas seu aspecto espiritual, que serviu de base para sua existência e manifestação no mundo, permanecerá. Para mim, este desempenha a função de backup – o checkpoint ou o savepoint dos jogos de vídeo – de forma a continuar de onde se parou, impedindo um recomeço ex nihilo.

O condicionamento existe porque ele é o principal indício da existência da reencarnação. As diferenças naturais entre as pessoas, as quais a ciência não consegue explicar através da genética ou da psicologia, como é no caso de irmãos gêmeos univitelinos, que são clones, cópias um do outro, teriam fundamento nessa bagagem espiritual. É o que garante a evolução psíquica e espiritual dos seres vivos, tendo a morte mais um papel de controle e renovação.

Para finalizar, a ideia de Pondé de que a imortalidade poderia ser infernal só faria sentido se esta fosse monótona. É verdade, muitos pregam a recompensa eterna – os Céus – ou o castigo eterno – o inferno – como destinos do pós-vida, os quais considero realmente monótonos e com os quais não concordo muito (pelas ideias que apresentei, o leitor pôde notar).

Os Céus e o Inferno são antes para mim estados de espírito do que lugares no além. Conceitos como a Roda de Samsara, os Dez Estados da Existência e o Nirvana – que é a libertação e em certo sentido uma aniquilação – soam mais coerentes e críveis aos meus ouvidos.

Tuesday, October 10, 2017

Pensando com a própria cabeça – réplica ao “Nosso Coro Particular de Demônios” (Intro e Parte I)

Esta será uma série de publicações que farei em meu blog em resposta ao Capítulo V do livro “Filosofia para Corajosos”, de Luiz Felipe Pondé.

Ele sugeriu que pensássemos com a nossa própria cabeça. Vou atender ao pedido dele.

(é possível que eu dê continuidade às minhas reflexões depois de eu responder a todas as perguntas feitas no referido capítulo do livro)


1. O que estamos fazendo aqui no mundo?

Ideias as pessoas têm aos montes, esta é a verdade. Quem está certo? Quem está errado? Esta pergunta, sim, já é bem mais difícil de responder. Até porque a resposta acaba quase, senão sempre dependendo de nosso condicionamento. O que nos torna quase sempre pessoas parciais, que não conseguem enxergar ou compreender algo de forma isenta.

Para facilitar um pouco para quem esteja lendo estas linhas, costumo seguir o princípio do não-absolutismo, presente no Jainismo: ninguém é detentor da verdade absoluta; as pessoas podem ser, contudo, observadoras de apenas uma parte dela, nunca do todo, de forma que seus pontos de vista podem corresponder à uma fração dela. Tal coisa acontece, obviamente, porque jamais conseguiremos entrar em contato com toda a verdade, e há questões e elementos que podem depender de coisas que estão além de nosso campo de percepção para serem plenamente compreendidas (como eu acredito sempre haver). Não vou entrar em detalhes sobre este tema, porque tomaria um espaço muito grande e nos desviaria do foco central deste primeiro ítem.

Respondendo à pergunta, eu tenho ideia do que estamos fazendo aqui, e posso ter ideia. Não há nada que possa me impedir de tê-la; nem a incerteza, nem a impossibilidade de averiguar 100% daquilo que afirmo. O que não significa que a minha ideia seja a verdade absoluta. Ideias são apenas ideias. Elas podem ou não condizer com a realidade, em graus maiores ou menores. Em plenitude, quando se trata de assuntos subjetivos como este, acho bastante improvável. A certeza só acompanha fatos incontestáveis, do tipo 1+1=2, o ano tem 365 dias, ou de que a Terra é redonda (sim, ela é redonda).

A resposta que tenho pode se resumir a uma frase que gosto muito de usar, e cuja autoria desconheço: “o homem é o Universo se olhando no espelho”. Não acredito que sejamos frutos do acaso. Entendo que nossa existência é lógica como a sequência dos números: do número um nascem todos os outros números, infinitos. Como explicar isto? Talvez só estando dentro da minha cabeça para entender o que quero passar, mas o que posso dizer é que nossa própria existência já explica o que estamos fazendo aqui: vivendo.

Meio óbvio, eu sei.

Mas a vida, no meu entendimento, é a essência e o propósito de tudo. Os elementos são a matéria-prima para a obra que é a vida, e eu os vejo como sendo vida também, mas em seu estágio primitivo. (nem tente usar o conceito comum que se tem de vida para tentar entender o que estou dizendo, porque não é isso) São as combinações dos elementos de uns com os outros, entre iguais ou diferentes, que geram novas possibilidades, e a complexidade resultada disto é o que traz a riqueza, a diversidade e a vida manifesta – o que eu chamo de vida manifesta e o que as pessoas chamam simplesmente de “vida” – em inúmeras formas.

Querer entender a plenitude de todo este processo vejo como pretensão descabida, porque somos insignificantes diante da imensidão do Universo. Somos ignorantes e permaneceremos ignorantes sobre o Todo. O que não impede, volto a dizer, das pessoas pensarem, imaginarem, terem ideias, palpites e até estudarem a Física – a natureza das coisas – para compreender melhor essa parcela de mundo que nos envolve. Somos livres para isso.